quarta-feira, 17 de abril de 2013

SIMPLESMENTE AMIGO

Deixe-me ser teu amigo
Para fazer-te sentir uma amizade
Daquelas que brota da sinceridade
De olhos nos olhos, da vida

Deixe-me segurar tua mão e seguir contigo
O caminho sem fim da estrada que leva ao paraíso
Onde poderemos ser dois bons amigos
Que brincam a mesma luta, que choram a mesma tristeza
Que não se separam ao amanhecer do dia
Que andam pela mesma rua e que cantam a mesma poesia
Que vibram pela mesma lua e sonham a mesma alegria

Deixe-me sentir que tu és viva, que és humana
Que sentes o que eu sinto e que temes o que eu temo
Que és capaz de sorrir o meu sorriso e enxugar, se for preciso,
A lágrima que fugir dos meus olhos

Deixe-me tocar tua face para que eu sinta que tu existes
Pois mesmo podendo ver-te,
Não consigo acreditar que alguém como tu, sobrevives
Neste mundo tão pobre e invariavelmente tão triste

Deixe-me ser o chão que tu pisas, o céu que tu procuras
O braço que te sustenta, o rio onde repousas teus pés
A paz da noite a ti prometida
A saudade viva, que mesmo se fazendo antiga
Jamais será por ti, esquecida

Deixe-me ser tua própria envolvência tua magia, tua atraência
Ser, quem sabe, um segmento,
Um pequenino, indelével fragmento
De tua transparência, de tua indescritível existência


Edson Luiz de Mello Borges                                
fev-1978                                          





UM OLHAR ALÉM DO OLHAR


O PRIMEIRO BEIJO



     Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.
     - Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar?
     Ele foi simples:
     - Sim, já beijei antes uma mulher.
     - Quem era ela? perguntou com dor.
     Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.
     O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas sentir - era tão bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.
     E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca. 
     E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente engulia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.
     A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava. 
     E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto? Tentou por instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, enquanto sua sede era de anos.
     Não sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos, espreitando, farejando. 
     O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos estava... o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada.
     O ônibus parou, todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos. 
     De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga.
     Era a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os olhos. 
     Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água. 
     E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.
     Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido vivificador, o líquido germinador da vida... Olhou a estátua nua.
     Ele a havia beijado.
     Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva.
     Deu um passo para trás ou para frente, nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido.
     Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.
     Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele...
     Ele se tornara homem.


in "Felicidade Clandestina" - Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998





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domingo, 7 de abril de 2013

ÁGUA VIVA





        "E eis que depois de uma tarde de "quem sou eu" e de acordar à uma hora da madrugada ainda em desespero - eis que às três horas da madrugada acordei e me encontrei. Fui ao encontro de mim. Calma, alegre, plenitude sem fulminação. Simplesmente eu sou eu. e você é você. É vasto, vai durar. O que te escrevo é um "isto". Não vai parar: continua. Olha para mim e me ama. Não: tu olhas para ti e te amas. É o que está certo."



Clarice Lispector  -  in Água Viva