sábado, 30 de novembro de 2013

PEQUENINA FLOR

O sol queimando o tempo, alegrando a vida,
Se tornando sombra, amena, passiva,
Entrevando a terra, calada, cativa,
Que aceita a planta, que esguia se agiganta,
Escondendo em fruto, perdido, contido
Que então, ainda em botão, permanece esquivo,
Escondendo a beleza, vital, inigualável pureza,
Distante do cio, do mundo bravio,
Do homem errante, hipócrita caminhante,
Em seus passos peregrino, nos seus atos, desatino,
Que virá encurtar o seu incerto destino.

E o pequeno botão, em intensa explosão,
Continua escondido, como num sonho mantido,
Na espera do sim, que o fará cintilar enfim,
Não mais evitando os pássaros,
Não mais fugindo aos insetos, pequenos seres inquietos,
Às borboletas coloridas, em suas asas flutuando,
Como que agradecidas pela liberdade ora suspirando

E como um milagre de existência,
Num pura, verdadeira experiência,
O solitário botão se abre, se despe, se feminiza,
Aparece e se descobre, se fragiliza,
Entrega-se ao tempo, brincando ao vento,
Perfeito e imaculado sentimento,
No grito mais profundo, da vida sobre o mundo,
Verdade que a engrandece, real, viva,
Como se fosse uma canção,
Como se fora sempre uma prece.

O tempo então, testemunha dessa ilusão,
Com seus olhos sagazes, contínuos movimentos tenazes,
Percebe o homem, em andar cambaleante,
Percorrer seus caminhos, incertos horizontes,
Em passos sem ritmo e sem expressão,
Debruçar-se sobre a planta, indefesa, frágil sobre o chão
E arrancar-lhe a flor, agora revestida,
Não de beleza, mas de dor,
Que sente, pétala a pétala, sendo esmagada
Entre os dedos do homem, eterno conquistador

A beleza da flor, temporária e ilusória,
Jaz agora, descrevendo a trajetória,
Que um ser em autodestruição,
Perdido, alma em corrosão,
Pequenina flor, ora destroçada,
Há de ser refeita, recomeçada
E em sua natural atraência,
Costumeira e latente envolvência,
Estará presente na vida do homem, sem mesmo ele saber.
Estará presente nos seus dias e no seu desaparecer.

Edson Luiz de Mello Borges
abril-1978              
Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você


não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em


entender, viver ultrapassa qualquer entendimento. 



Clarice Lispector                                    




                            

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

A ambição universal dos homens é viver 

colhendo o que nunca plantaram.



Adam Smith                                       




SONETO DE SEPARAÇÃO

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.



Vinicius de Moraes                                                          

terça-feira, 26 de novembro de 2013

domingo, 24 de novembro de 2013

SE É QUE AINDA HÁ TEMPO

E por falar em palavras, quantas terei que dizer para que você escute, ao menos, uma? Quantas mentiras incertas terei que ensaiar para que nasça uma única e minha verdade? Quantos “não” terei que ouvir até vê-la pronunciar um simples “sim” que me faça compreender que não somos diferentes como aparenta ou como você quer que seja.

E por falar em lágrimas, quantas terei que chorar até que você se decida a enxugar aquela que morre em minha boca? Quantos olhares lacrimejados serão precisos jogar ao horizonte até que você resolva virar as costas ao orgulho que nos separa e voltar de braços abertos, todo o caminho que havia começado?

E por falar em sorrisos (quem diria!) quero vê-la sorrir e mostrar que a tristeza é passageira, que vai e vem como aquele carrossel onde transbordávamos de alegria e mostrávamos em nossas bocas os dentes pequenos ainda, da felicidade brotando para a vida.

Tudo se fazia alegria, vestida de um colorido vivo, que não fazia, senão, nos entusiasmar e, quem sabe, nos fazer amar. E nós amávamos. Amávamos cada momento do que vivíamos, por saber que  estávamos assim, juntos, à espera de uma amanhã, difícil de chegar, mas tão certo quanto a própria verdade.

Mas hoje, já não pensamos assim. Nossos sorrisos mais se parecem com um grito de guerra lançados em momentos de ódio, porque a realidade é assim, a vida é assim e assim é o mundo em que colocaremos nossos filhos para, quem sabe, brincarem num carrossel

Se é que ainda existem carrosséis
Se é que ainda há tempo para brincar
Se é que ainda há tempo para palavras
Se é que ainda há tempo para lágrimas
Se é que ainda há tempo para sorrisos

Se é que ainda há tempo...

Edson Luiz de Mello Borges
jan-1978              

sábado, 23 de novembro de 2013

Por que cometer erros antigos se há tantos erros novos a escolher? 

Bertrand Russel                          

O ÚLTIMO POEMA - MANUEL BANDEIRA

Assim eu quereria meu 

último poema

Que fosse terno dizendo 

as coisas mais simples 

e menos intencionais

Que fosse ardente 

como um soluço sem lágrimas

Que tivesse a beleza das flores 

quase sem perfume

A pureza da chama em que 

se consomem os diamantes mais límpidos

A paixão dos suicidas 

que se matam sem explicação.


Manuel Bandeira                           


                

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Sou uma filha da natureza:
quero pegar, sentir, tocar, ser.
E tudo isso já faz parte de um todo,
de um mistério.
Sou uma só... Sou um ser.
E deixo que você seja. Isso lhe assusta?
Creio que sim. Mas vale a pena.
Mesmo que doa. Dói só no começo.

Clarice Lispector                              

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

O valor das coisas não está no tempo 

que elas duram, mas na intensidade 

com que acontecem. Por isso, existem momentos 

inesquecíveis, coisas inexplicáveis

e pessoas incomparáveis.



Fernando Pessoa                               

domingo, 17 de novembro de 2013

Para se roubar um coração, é preciso que seja com muita habilidade, tem que ser vagarosamente, disfarçadamente, não se chega com ímpeto, 
não se alcança o coração de alguém com pressa. 
Tem que se aproximar com meias palavras, suavemente, apoderar-se dele aos poucos, com cuidado. 
Não se pode deixar que percebam que ele será roubado, na verdade, teremos que furtá-lo, docemente. 
Conquistar um coração de verdade dá trabalho, 
requer paciência, é como se fosse tecer uma colcha de retalhos, aplicar uma renda em um vestido, tratar de um jardim, cuidar de uma criança. 
É necessário que seja com destreza, com vontade, com encanto, carinho e sinceridade. 
Para se conquistar um coração definitivamente 
tem que ter garra e esperteza, mas não falo dessa esperteza que todos conhecem, falo da esperteza de sentimentos, daquela que existe guardada na alma em todos os momentos. 
Quando se deseja realmente conquistar um coração, é preciso que antes já tenhamos conseguido conquistar o nosso, é preciso que ele já tenha sido explorado nos mínimos detalhes, 
que já se tenha conseguido conhecer cada cantinho, entender cada espaço preenchido e aceitar cada espaço vago. 
...e então, quando finalmente esse coração for conquistado, quando tivermos nos apoderado dele, 
vai existir uma parte de alguém que seguirá conosco. 
Uma metade de alguém que será guiada por nós 
e o nosso coração passará a bater por conta desse outro coração. 
Eles sofrerão altos e baixos sim, mas com certeza haverá instantes, milhares de instantes de alegria. 
Baterá descompassado muitas vezes e sabe por que? 
Faltará a metade dele que ainda não está junto de nós. 
Até que um dia, cansado de estar dividido ao meio, esse coração chamará a sua outra parte e alguém por vontade própria, sem que precisemos roubá-la ou furtá-la nos entregará a metade que faltava. 
... e é assim que se rouba um coração, fácil não? 
Pois é, nós só precisaremos roubar uma metade, 
a outra virá na nossa mão e ficará detectado um roubo então! 
E é só por isso que encontramos tantas pessoas pela vida a fora que dizem que nunca mais conseguiram amar alguém... é simples... 
é porque elas não possuem mais coração, eles foram roubados, arrancados do seu peito, e somente com um grande amor ela terá um novo coração, afinal de contas, corações são para serem divididos, e com certeza esse grande amor repartirá o dele com você.


Luis Fernando Veríssimo                     

sábado, 16 de novembro de 2013

Não há nada de errado com a 

juventude que a idade não cure.


Jô Soares                                          


O OVO E A GALINHA - CLARICE LISPECTOR




O OVO E A GALINHA - CONTO DE CLARICE LISPECTOR

De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo.

Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver o ovo nunca se mantêm no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto o ovo há três milênios. – No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. – Só vê o ovo quem já o tiver visto. – Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. – Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo. – Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. – O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe.

Ver o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há sons supersônicos. Ninguém é capaz de ver o ovo. O cão vê o ovo? Só as máquinas vêem o ovo. O guindaste vê o ovo. – Quando eu era antiga um ovo pousou no meu ombro. – O amor pelo ovo também não se sente. O amor pelo ovo é supersensível. A gente não sabe que ama o ovo. – Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para não entornar o silêncio do ovo. Quando morri, tiraram de mim o ovo com cuidado. Ainda estava vivo. – Só quem visse o mundo veria o ovo. Como o mundo o ovo é óbvio.

O ovo não existe mais. Como a luz de uma estrela já morta, o ovo propriamente dito não existe mais. – Você é perfeito, ovo. Você é branco. – A você dedico o começo. A você dedico a primeira vez.

Ao ovo dedico a nação chinesa.

O ovo é uma coisa suspensa. Nunca pousou. Quando pousa, não foi ele quem pousou. Foi uma coisa que ficou embaixo do ovo. – Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo. – Jamais pensar no ovo é um modo de tê-lo visto. – Será que sei do ovo? É quase certo que sei. Assim: existo, logo sei. – O que eu não sei do ovo é o que realmente importa. O que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente dito. – A Lua é habitada por ovos.

O ovo é uma exteriorização. Ter uma casca é dar-se.- O ovo desnuda a cozinha. Faz da mesa um plano inclinado. O ovo expõe. – Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa: está com fome.

O ovo é a alma da galinha. A galinha desajeitada. O ovo certo. A galinha assustada. O ovo certo. Como um projétil parado. Pois ovo é ovo no espaço. Ovo sobre azul. – Eu te amo, ovo. Eu te amo como uma coisa nem sequer sabe que ama outra coisa. – Não toco nele. A aura de meus dedos é que vê o ovo. Não toco nele – Mas dedicar-me à visão do ovo seria morrer para a vida mundana, e eu preciso da gema e da clara. – O ovo me vê. O ovo me idealiza? O ovo me medita? Não, o ovo apenas me vê. É isento da compreensão que fere. – O ovo nunca lutou. Ele é um dom. – O ovo é invisível a olho nu. De ovo a ovo chega-se a Deus, que é invisível a olho nu. – O ovo terá sido talvez um triângulo que tanto rolou no espaço que foi se ovalando. – O ovo é basicamente um jarro? Terá sido o primeiro jarro moldado pelos etruscos ? Não. O ovo é originário da Macedônia. Lá foi calculado, fruto da mais penosa espontaneidade. Nas areias da Macedônia um homem com uma vara na mão desenhou-o. E depois apagou-o com o pé nu.

O ovo é coisa que precisa tomar cuidado. Por isso a galinha é o disfarce do ovo. Para que o ovo atravesse os tempos a galinha existe. Mãe é para isso. – O ovo vive foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época. – O ovo por enquanto será sempre revolucionário. – Ele vive dentro da galinha para que não o chamem de branco. O ovo é branco mesmo. Mas não pode ser chamado de branco. Não porque isso faça mal a ele, mas as pessoas que chamam ovo de branco, essas pessoas morrem para a vida. Chamar de branco aquilo que é branco pode destruir a humanidade. Uma vez um homem foi acusado de ser o que ele era, e foi chamado de Aquele Homem. Não tinham mentido: Ele era. Mas até hoje ainda não nos recuperamos, uns após outros. A lei geral para continuarmos vivos: pode-se dizer “um rosto bonito”, mas quem disser “O rosto”, morre; por ter esgotado o assunto.

Com o tempo, o ovo se tornou um ovo de galinha. Não o é. Mas, adotado, usa-lhe o sobrenome. – Deve-se dizer “o ovo da galinha”. Se eu disser apenas “o ovo”, esgota-se o assunto, e o mundo fica nu. – Em relação ao ovo, o perigo é que se descubra o que se poderia chamar de beleza, isto é, sua veracidade. A veracidade do ovo não é verossímil. Se descobrirem, podem querer obrigá-lo a se tornar retangular. O perigo não é para o ovo, ele não se tornaria retangular. (Nossa garantia é que ele não pode: não poder é a grande força do ovo: sua grandiosidade vem da grandeza de não poder, que se irradia como um não querer.) Mas quem lutasse por torná-lo retangular estaria perdendo a própria vida. O ovo nos expõe, portanto, em perigo. Nossa vantagem é que o ovo é invisível. E quanto aos iniciados, os iniciados disfarçam o ovo.

Quanto ao corpo da galinha, o corpo da galinha é a maior prova de que o ovo não existe. Basta olhar para a galinha para se tornar óbvio que o ovo é impossível de existir.

E a galinha? O ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida. O ovo é o sonho inatingível da galinha. A galinha ama o ovo. Ela não sabe que existe o ovo. Se soubesse que tem em si mesma o ovo, perderia o estado de galinha. Ser galinha é a sobrevivência da galinha. Sobreviver é a salvação. Pois parece que viver não existe. Viver leva a morte. Então o que a galinha faz é estar permanentemente sobrevivendo. Sobreviver chama-se manter luta contra a vida que é mortal. Ser galinha é isso. A galinha tem o ar constrangido.

É necessário que a galinha não saiba que tem um ovo. Senão ela se salvaria como galinha, o que também não é garantido, mas perderia o ovo. Então ela não sabe. Para que o ovo use a galinha é que a galinha existe. Ela era só para se cumprir, mas gostou. O desarvoramento da galinha vem disso: gostar não fazia parte de nascer. Gostar de estar vivo dói. – Quanto a quem veio antes, foi o ovo que achou a galinha. A galinha não foi sequer chamada. A galinha é diretamente uma escolhida. – A galinha vive como em sonho. Não tem senso de realidade. Todo o susto da galinha é porque estão sempre interrompendo o seu devaneio. A galinha é um grande sono. – A galinha sofre de um mal desconhecido. O mal desconhecido é o ovo. – Ela não sabe se explicar: “ sei que o erro está em mim mesma”, ela chama de erro a vida, “não sei mais o que sinto”, etc.

“Etc., etc., etc.,” é o que cacareja o dia inteiro a galinha. A galinha tem muita vida interior. Para falar a verdade a galinha só tem mesmo é vida interior. A nossa visão de sua vida interior é o que chamamos de “galinha”. A vida interior na galinha consiste em agir como se entendesse. Qualquer ameaça e ela grita em escândalo feito uma doida. Tudo isso para que o ovo não se quebre dentro dela. Ovo que se quebra dentro de galinha é como sangue.

A galinha olha o horizonte. Como se da linha do horizonte é que viesse vindo um ovo. Fora de ser um meio de transporte para o ovo, a galinha é tonta, desocupada e míope. Como poderia a galinha se entender se ela é a contradição de um ovo? O ovo ainda é o mesmo que se originou na Macedônia. A galinha é sempre tragédia mais moderna. Está sempre inutilmente a par. E continua sendo redesenhada. Ainda não se achou a forma mais adequada para uma galinha. Enquanto meu vizinho atende ao telefone ele redesenha com lápis distraído a galinha. Mas para a galinha não há jeito: está na sua condição não servir a si própria. Sendo, porém, o seu destino mais importante que ela, e sendo o seu destino o ovo, a sua vida pessoal não nos interessa.

Dentro de si a galinha não reconhece o ovo, mas fora de si também não o reconhece. Quando a galinha vê o ovo pensa que está lidando com uma coisa impossível. É com o coração batendo, com o coração batendo tanto, ela não o reconhece.

De repente olho o ovo na cozinha e vejo nele a comida. Não o reconheço, e meu coração bate. A metamorfose está se fazendo em mim: começo a não poder mais enxergar o ovo. Fora de cada ovo particular, fora de cada ovo que se come, o ovo não existe. Já não consigo mais crer num ovo. Estou cada vez mais sem força de acreditar, estou morrendo, adeus, olhei demais um ovo e ele me foi adormecendo.

A galinha não queria sacrificar a sua vida. A que optou por querer ser “feliz”. A que não percebia que, se passasse a vida desenhando dentro de si como numa iluminura o ovo, ela estaria servindo. A que não sabia perder-se a si mesma. A que pensou que tinha penas de galinha para se cobrir por possuir pele preciosa, sem entender que as penas eram exclusivamente para suavizar, a travessia ao carregar o ovo, porque o sofrimento intenso poderia prejudicar o ovo. A que pensou que o prazer lhe era um dom, sem perceber que era para que ela se distraísse totalmente enquanto o ovo se faria. A que não sabia que “eu” é apenas uma das palavras que se desenham enquanto se atende ao telefone, mera tentativa de buscar forma mais adequada. A que pensou que “eu” significa ter um si-mesmo. As galinhas prejudiciais ao ovo são aquelas que são um “eu” sem trégua. Nelas o “eu” é tão constante que elas já não podem mais pronunciar a palavra “ovo”. Mas, quem sabe, era disso mesmo que o ovo precisava. Pois se elas não estivessem tão distraídas, se prestassem atenção à grande vida que se faz dentro delas, atrapalhariam o ovo.

Comecei a falar da galinha e há muito já não estou falando mais da galinha. Mas ainda estou falando do ovo.

E eis que não entendo o ovo. Só entendo o ovo quebrado: quebro-o na frigideira. É deste modo indireto que me ofereço à existência do ovo: meu sacrifício é reduzir-me à minha própria vida pessoal. Fiz do meu prazer e da minha dor o meu destino disfarçado. E ter apenas a própria vida é, para quem viu o ovo, um sacrifício. Como aqueles que, no convento, varrem o chão e lavam a roupa, servindo sem a glória de função maior, meu trabalho é o de viver os meus prazeres e as minhas dores. É necessário que eu tenha a modéstia de viver.

Pego mais um ovo na cozinha, quebro-lhe a casca e forma. E a partir deste instante exato nunca existiu um ovo. É absolutamente indispensável que eu seja uma ocupada e uma distraída. Sou indispensavelmente um dos que renegam. Faço parte da maçonaria dos que viram uma vez o ovo e o renegam como forma de protegê-lo. Somos os que se abstêm de destruir, e nisso se consomem. Nós, agentes disfarçados e distribuídos pelas funções menos reveladoras, nós às vezes nos reconhecemos. A um certo modo de olhar, há um jeito de dar a mão, nós nos reconhecemos e a isto chamamos de amor. E então, não é necessário o disfarce: embora não se fale, também não se mente, embora não se diga a verdade, também não é necessário dissimular. Amor é quando é concedido participar um pouco mais. Poucos querem o amor, porque o amor é a grande desilusão de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras ilusões. Há os que voluntariam para o amor, pensando que o amor enriquecerá a vida pessoal. É o contrário: amor é finalmente a pobreza. Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor. E não é prêmio, por isso não envaidece, amor não é prêmio, é uma condição concedida exclusivamente para aqueles que, sem ele, corromperiam o ovo com a dor pessoal. Isso não faz do amor uma exceção honrosa; ele é exatamente concedido aos maus agentes, àqueles que atrapalhariam tudo se não lhes fosse permitido adivinhar vagamente.

A todos os agentes são dadas muitas vantagens para que o ovo se faça. Não é o caso de se ter inveja pois, inclusive algumas das condições, piores do que as dos outros, são apenas as condições ideais para o ovo. Quanto ao prazer dos agentes, eles também o recebem sem orgulho. Austeramente vivem todos os prazeres: inclusive é o nosso sacrifício para que o ovo se faça. Já nos foi imposta, inclusive uma natureza adequada a muito prazer. O que facilita. Pelo menos torna menos penoso o prazer.

Há casos de agentes que se suicidam: acham insuficientes as pouquíssimas instruções recebidas e se sentem sem apoio. Houve o caso do agente que revelou publicamente ser agente porque lhe foi intolerável não ser compreendido, e ele não suportava mais não ter o respeito alheio: morreu atropelado quando saía de um restaurante. Houve um outro que nem precisou ser eliminado: ele próprio se consumiu lentamente na sua revolta, sua revolta veio quando ele descobriu que as duas ou três instruções recebidas não incluíam nenhuma explicação. Houve outro também eliminado, porque achava que “a verdade deve ser corajosamente dita”, e começou em primeiro lugar a procurá-la; dele se disse que morreu em nome da verdade com sua inocência; sua aparente coragem era tolice, e era ingênuo o seu desejo de lealdade, ele compreendera que ser leal não é coisa limpa, ser leal é ser desleal para com todo o resto. Esses casos extremos de morte não são por crueldade. É que há um trabalho, digamos cósmico, a ser feito, e os casos individuais infelizmente não podem ser levados em consideração. Para os que sucumbem e se tornam individuais é que existem as instituições, a caridade, a compreensão que não discrimina motivos, a nossa vida humana enfim.

Os ovos estalam na frigideira, e mergulhada no sonho preparo o café da manhã. Sem nenhum senso da realidade, grito pelas crianças que brotam de várias camas, arrastam cadeiras e comem, e o trabalho do dia amanhecido começa, gritado e rido e comido, clara e gema, alegria entre brigas, dia que é o nosso sal e nós somos o sal do dia, viver é extremamente tolerável, viver ocupa e distrai, viver faz rir.

E me faz sorrir no meu mistério. O meu mistério é que eu ser apenas um meio, e não um fim, tem-me dado a mais maliciosa das liberdades: não sou boba e aproveito. Inclusive, faço um mal aos outros que, francamente. O falso emprego que me deram para disfarçar a minha verdadeira função, pois aproveito o falso emprego e dele faço o meu verdadeiro; inclusive o dinheiro que me dão como diária para facilitar a minha vida de modo a que o ovo se faça, pois esse dinheiro eu tenho usado para outros fins, desvio de verba, ultimamente comprei ações na Brahma e estou rica. A isso tudo ainda chamo de ter a necessária modéstia de viver. E também o tempo que me deram, e que nos dão apenas para que no ócio honrado o ovo se faça, pois tenho usado esse tempo para prazeres ilícitos e dores ilícitas, inteiramente esquecida do ovo. Esta é a minha simplicidade.

Ou é isso mesmo que eles querem que me aconteça, exatamente para que o ovo se cumpra? É liberdade ou estou sendo mandada? Pois venho notando que tudo que é erro meu tem sido aproveitado. Minha revolta é que para eles eu não sou nada, eu sou apenas preciosa: eles cuidam de mim segundo por segundo, com a mais absoluta falta de amor; sou apenas preciosa. Com o dinheiro que me dão, ando ultimamente bebendo. Abuso de confiança? Mas é que ninguém sabe como se sente por dentro aquele cujo emprego consiste em fingir que está traindo, e que termina acreditando na própria traição. Cujo emprego consiste em diariamente esquecer. Aquele de quem é exigida a aparente desonra. Nem meu espelho reflete mais um rosto que seja meu. Ou sou um agente, ou é a traição mesmo.

Mas durmo o sono dos justos por saber que minha vida fútil não atrapalha a marcha do grande tempo. Pelo contrário: parece que é exigido de mim que eu seja extremamente fútil, é exigido de mim inclusive que eu durma como justo. Eles me querem preocupada e distraída, e não lhes importa como. Pois, com minha atenção errada e minha tolice grave, eu poderia atrapalhar o que se está fazendo através de mim. É que eu própria, eu propriamente dita, só tenho mesmo servido para atrapalhar. O que me revela que talvez eu seja um agente é a idéia de que meu destino me ultrapassa: pelo menos isso eles tiveram mesmo que me deixar adivinhar, eu era daqueles que fariam mal o trabalho se ao menos não adivinhassem um pouco; fizeram-me esquecer o que me deixaram adivinhar, mas vagamente ficou-me a noção de que meu destino me ultrapassa, e de que sou instrumento do trabalho deles. Mas de qualquer modo era só instrumento que eu poderia ser, pois o trabalho não poderia ser mesmo meu. Já experimentei me estabelecer por conta própria e não deu certo; ficou-me até hoje essa mão trêmula. Tivesse eu insistido um pouco mais e teria perdido para sempre a saúde. Desde então, desde essa malograda experiência, procuro raciocinar desse modo: que já me foi dado muito, que eles já me concederam tudo o que pode ser concedido; e que os outros agentes, muito superiores a mim, também trabalharam apenas para o que não sabiam. E com as mesmas pouquíssimas instruções. Já me foi dado muito; isto, por exemplo: uma vez ou outra, com o coração batendo pelo privilégio, eu pelo menos sei que não estou reconhecendo! Com o coração batendo de emoção, eu pelo menos não compreendo! Com o coração batendo de confiança, eu pelo menos não sei.

Mas e o ovo? Este é um dos subterfúgios deles: enquanto eu falava sobre o ovo, eu tinha esquecido do ovo. “Falai, falai”, instruíram-me eles. E o ovo fica inteiramente protegido por tantas palavras. Falai muito, é uma das instruções, estou tão cansada.

Por devoção ao ovo, eu o esqueci. Meu necessário esquecimento. Meu interesseiro esquecimento. Pois o ovo é um esquivo. Diante de minha adoração possessiva ele poderia retrair-se e nunca mais voltar. Mas se ele for esquecido. Se eu fizer o sacrifício de esquecê-lo. Se o ovo for impossível. Então – livre, delicado, sem mensagem alguma para mim – talvez uma vez ainda ele se locomova do espaço até esta janela que desde sempre deixei aberta. E de madrugada baixe no nosso edifício. Sereno até a cozinha. Iluminando-a de minha palidez.



sexta-feira, 15 de novembro de 2013

HISTÓRIA DE UM PEQUENO ERRANTE

Do encontro de dois seres ansiosos
Fizeram com que eu viesse a nascer
Brindaram minha vinda, carinhosos
Souberam, com alegria, me crescer

Então, envolto em magia e graça
Provei do sol do céu e o sal do mar
Eu vi flores brotando por pirraça
E pássaros esquivos a voar

Um dia eu me vi, quase crescido
E o mundo em minha volta se matar
Senti vontade de não ter nascido
Voltar ao ventre e nunca retornar

Então alguém me disse “isso é assim mesmo”
- Por que você evita acreditar ?
- Se você está aqui, não foi a esmo
- Não foi para morrer, mas para amar

Começo a acreditar nessa verdade
E sinto o meu dia amanhecer
Caminho meus caminhos, liberdade
Com garra e força, eu sei que vou viver

Seguir como guerreiro, minha estrada
E ver que a cor do amor, é azul maior
E hei de levantar a minha espada
Pra refazer o mundo bem melhor

E quando então, sentir-me jovem cansado
Lembrar dos dias bons que eu vivi
Buscar dentro de mim o meu passado
Rever o que chorei e o que sorri

No dia em que eu tiver que ir embora
Que pode demorar, mas há de vir
Alguém fará contar a minha história
Meu filho, bem melhor vai prosseguir

E ele, nos seus passos corajosos
Fará muito melhor o que não fiz
Sua vida, em momentos caprichosos
Será muito mais forte, mais feliz

Edson Luiz de Mello Borges
dez-1982              

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

terça-feira, 12 de novembro de 2013

AS DUAS FLORES

São duas flores unidas
São duas rosas nascidas
Talvez do mesmo arrebol,
Vivendo,no mesmo galho,
Da mesma gota de orvalho,
Do mesmo raio de sol.

Unidas, bem como as penas
das duas asas pequenas
De um passarinho do céu...
Como um casal de rolinhas,
Como a tribo de andorinhas
Da tarde no frouxo véu.

Unidas, bem como os prantos,
Que em parelha descem tantos
Das profundezas do olhar...
Como o suspiro e o desgosto,
Como as covinhas do rosto,
Como as estrelas do mar.

Unidas... Ai quem pudera
Numa eterna primavera
Viver, qual vive esta flor.
Juntar as rosas da vida
Na rama verde e florida,
Na verde rama do amor!


Castro Alves                                   

FELICIDADE CLANDESTINA - CLARICE LISPECTOR


CAPA DA PRIMEIRA EDIÇÃO 1971






http://www.youblisher.com/p/922699-FELICIDADE-CLANDESTINA-E-OUTROS-CONTOS-CLARICE-LISPECTOR/



domingo, 10 de novembro de 2013

O PRIMEIRO BEIJO - CLARICE LISPECTOR






CONTO DE CLARICE LISPECTOR






AS ROSAS

Rosas que desabrochais, 
Como os primeiros amores, 
Aos suaves resplendores 
          Matinais; 

Em vão ostentais, em vão, 
A vossa graça suprema; 
De pouco vale; é o diadema 
          Da ilusão. 

Em vão encheis de aroma o ar da tarde; 
Em vão abris o seio úmido e fresco 
Do sol nascente aos beijos amorosos; 
Em vão ornais a fronte à meiga virgem; 
Em vão, como penhor de puro afeto, 
          Como um elo das almas, 
Passais do seio amante ao seio amante; 
          Lá bate a hora infausta 
Em que é força morrer; as folhas lindas 
Perdem o viço da manhã primeira, 
          As graças e o perfume. 
Rosas que sois então? – Restos perdidos, 
Folhas mortas que o tempo esquece, e espalha 
Brisa do inverno ou mão indiferente. 

          Tal é o vosso destino, 
          Ó filhas da natureza; 
          Em que vos pese à beleza, 
                   Pereceis; 
          Mas, não... Se a mão de um poeta 
          Vos cultiva agora, ó rosas, 
          Mais vivas, mais jubilosas, 
                   Floresceis. 


Machado de Assis, in 'Crisálidas'                          


A curiosidade é mais importante
que o conhecimento.


Albert Einstein                        

sábado, 9 de novembro de 2013

ALMAS E CONSCIÊNCIAS

Queria seguir meus caminhos com a mesma força que outros já o fizeram e em meus passos indecisos e inconstantes que já se manifestaram, entender o verdadeiro sentido da vida que, embora vivida e sentida com tanta angustia e frustração, continua sendo o maior motivo para continuar vivendo, mesmo em desamor, mesmo em opressão.

Queria alegrar meus olhos com o sorriso nos lábios dos homens e alegrar meu coração com a presença da criança que desabrocha como  botão, que mostra com naturalidade que em seu pequeno (grande) mundo, existe razão suficiente para rir e sorrir inocentemente, não como as de outrora, pois já se veem infectadas e corrompidas pela neurose do nosso grande (pequeno) mundo de agora.

Queria poder gritar constantemente e em todo lugar, sobre minha juventude e sobre minhas ambições, sobre minhas verdades e minhas paixões e, quem sabe, se tivesse para quem, falar baixinho que quero e preciso de atenção.
Sair pelo mundo, quem sabe sem destino ou talvez com a certeza de meus caminhos que sinto, serão ora alegres, ora de espinhos que, embora não queiram, hei de saber curar minhas feridas e em cada cicatriz marcada, haverá uma história e um pedaço de minha caminhada.

Queria descobrir novos mundos e novos ares, todo azuis como são os mares e procurar em cada um deles, homens menos algozes, menos violentos, menos ferozes. Homens que saibam amar e, se preciso, que saibam chorar. Chorar por verem outros homens destruírem suas próprias almas e as almas que ainda restarem. Chorar por isso, ou simplesmente, chorar.

Ah, como eu queria! Além disso tudo muitas outras coisas que trago sangrando em meu peito de forma viva como se quisessem verter. Angústias que permanecessem escondidas, contidas pela consciência de um século de loucos e inconsequentes. Ah, como eu queria!

Porém, temos que levantar a cabeça e os olhos e ver um mundo onde a realidade desperta sonhadores e , onde a irreverencia do sentimentalismo jovem, é tratado em nossos dias, como fantasia, ou , as vezes, como mera rebeldia.


Hoje somos aquilo que uma sociedade da qual fazemos parte, quer que sejamos, não importando vontades, nem ideais, nem intelectualidade. Somos o que podemos comprar, também não importando o que compramos. Somos consumidores por excelência e, de mãos dadas ou não, seguimos lado a lado pelas ruas sombrias de um supermercado de almas e consciências.

Edson Luiz de Mello Borges
Ago-1983